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segunda-feira, 15 de março de 2021

Gabigol ignora regras, enquanto o clube mais popular do país se cala

O luxuoso salão dedicado a jogatina clandestina onde estavam Gabigol e outras 199 pessoas no último sábado, em São Paulo, é o emblema de uma forma de pensar que congrega parcela importante da sociedade brasileira. Importa pouco a tragédia sanitária que nos assola, importa pouco que a irresponsabilidade consigo mesmo seja também uma ameaça ao outro, a gente muito mais vulnerável e menos abastada. Importa muito menos o decreto de uma autoridade, tampouco constrange frequentar um ambiente de contravenção. Há quem se julgue imune ao vírus e à lei.

No mesmo dia em que o jogador do Flamengo se divertia na capital paulista – num horário em que a cidade estava sob toque de restrição – , o estado de São Paulo chegou à triste marca de 60 mortes na fila por uma UTI.

Gabigol disse que, durante a pandemia, "sempre respeitou as regras". No sábado, colecionou infrações. Foi o rosto mais famoso de um episódio de desobediência explícita, poucas semanas após dedicar parte do tempo em que poderia estar festejando um título brasileiro a dar lição de moral em jornalistas e colegas de profissão. O erro de Gabigol não é do mesmo tamanho do que cometeram as outras 199 pessoas naquele cassino fora da lei. Porque o atacante é, provavelmente, o maior personagem do futebol doméstico do Brasil, ídolo, exemplo. Pode ser cruel colocar tanto peso num atleta, mas é assim que as coisas funcionam.

Ocorre que o episódio não é revelador somente da conduta de Gabigol. Permite debates muito mais amplos. Primeiro, por confirmar algo de que já se desconfiava: o futebol, em sua batalha para continuar funcionando, vende uma segurança que é incapaz de garantir. Ao recusar o enxugamento de competições, ao promover uma maratona de jogos que emendam duas temporadas seguidas ao longo de 16 meses, obviamente a ideia de uma bolha sanitária se tornou risível.

Nenhum trabalhador ficaria 16 meses confinado. Com jogos atrás de jogos, concentrações atrás de concentrações e viagens após viagens, jogadores convivem mais e mais. E testes não bastam: as janelas entre a contaminação e a detecção de um resultado positivo geram surtos. Este número o futebol tem. Mas o controle sobre a rotina destes atletas fora do centro de treinamento, o futebol não tem. Como ilustra o caso Gabigol. Tampouco se sabe o tamanho do risco imposto por jogadores a outros passageiros que dividiram com eles os tantos aviões usados para cumprir a insana rotina de jogos. Para piorar, o pedido de demissão de um médico do Corinthians gera outra frente de preocupação: em meio à pressão por vitórias, não soa irreal que, em algum canto do país, jogadores recentemente infectados tenham sido escalados de forma açodada.

Mas o constrangedor flagrante em Gabigol permite outro debate. Quando se diz que clubes vendem uma falsa imagem de prestadores de serviço, é difícil achar exemplo mais bem acabado. Um ídolo com imenso poder influenciador, artilheiro do clube mais popular do país, acabara de ser detido contrariando todas as normas recomendadas de combate à propagação do vírus. Se esta não é uma ocasião em que jogador e clube deveriam tomar a frente e lançar fortes mensagens educativas, quando será este momento?

Do Flamengo, não se sabe se por convicção, conveniência ou por algum alinhamento político, a única manifestação que se obteve nas primeiras 24 horas após o incidente foi desoladora. Ao blog do jornalista Mauro Cezar Pereira, o vice-presidente Rodrigo Dunshee de Abranches disse que se tratava de "assunto pessoal" do jogador. O momento pedia justamente o oposto: assumir claramente que seu atleta errou, dizer à sociedade e a sua imensa torcida qual o comportamento esperado de quem se propõe a viver em coletividade em meio à mais grave crise de saúde pública que muitas gerações já experimentaram. E, claro, defender com veemência a vacinação, repudiar aglomerações e festas clandestinas. Há gente morrendo no Brasil por falta de leito.

Quando defende o prosseguimento das competições, o futebol se apresenta como "instrumento de divulgação de medidas" sanitárias. Quando uma de suas estrelas se envolve em episódio comprometedor, o canal de comunicação com a sociedade parece sair do ar. (Do Globo Esporte)

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