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segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Travesseiro de pedra

Com o título acima, acompanhe a crônica de João Eudes Costa, enviada ao blog:

Ocorrências aparentemente sem importância levam-nos a expressivas conclusões, ou mesmo servem de tema para meditações de muito valor. Quando se trata de assuntos relacionados com o próximo de quem vivemos muito distanciados, as reflexões assumem proporções da mais alta significação.
                         
Há pessoas com quem convivemos, outras com quem nos encontramos sempre e ainda aquelas que julgamos pertencer ao nosso convívio, porém, na realidade, delas estamos distanciados, a ponto de pouco sabermos acerca de seus problemas cotidianos. A fraternidade parece que está sendo esmagada pelos envolventes problemas do mundo moderno.

Se acontecer tamanha indiferença com as pessoas de quem nos consideramos mais próximos, qual será à distância que nos separa daquelas com quem cruzamos em nosso dia a dia, e nem sequer lhe dirigimos um olhar?

Há poucos dias, de passagem por uma calçada, toquei, involuntariamente, nas pernas de um velho, que estava deitado ao chão, sem qualquer abrigo protetor. Se não fora o tropeço, seria mais um que passaria despercebido, a exemplo de tantos outros com quem cruzei, no transcorrer do dia, ávidos, talvez, por um cumprimento, que não receberam.

O Impacto fez-me olhar para o chão e, a meus pés, estava um homem, sexagenário, de barbas e cabelos brancos, sem calçados, vestes puídas, dormindo com absoluta tranquilidade, com a cabeça sobre a pedra tosca.

Ao seu lado, ninguém. Apenas um cajado de madeira e um pequeno saco com objetos pessoais que pouco valia, além de um par de chinelos, de couro cru, bastante surrado, indicando grandes caminhadas. Mesmo com a pancada recebida o homem não interrompeu o sono, apenas virou-se de um lado para outro, evitando que alguém voltasse a bater em seu corpo.

Parei para olhar o velho no seu sono angelical. Dormia com a tranquilidade dos justos. A dureza do travesseiro não parecia incomodar e se o fazia não adiantava reclamar. Seus humildes pertences não precisavam ser escondidos, pois ninguém deles queria se apossar. Como iriam roubar utensílios sem nenhum valor, se para ele só olhavam, quando lhe pisavam os pés? A consciência, sem mácula, acariciava um corpo cansado e castigado pelo tempo. Embalava um sono profundo, proporcionando um descanso merecido e reparador. Despreocupado, sem ambição, o ancião nada temia, pois não havia feito qualquer maldade, que, agora, tivesse medo de recebê-la de volta.

Movendo-me de maneira maquinal, pois a mente continuava embevecida com a tranquilidade do velho, continuei a caminhar pela noite escura. Como se a outra face do quadro estivesse oculta, fui despertado daquele êxtase por um cão policial que latia agressivamente e se batia ao encontro de trabalhadas grades de ferro, limites de um luxuoso palacete.

Do lado de fora, um vigia, agasalhado, rondava atentamente a importante residência. O avançado da hora recomendava que a mansão permanecesse às escuras. Apenas algumas luzes nos pontos estratégicos, para a segurança da guarda.

Na escuridão da grande casa, destacava-se um apartamento iluminado, onde vidros transparentes mostravam as cortinas e a sombra de um corpo inquieto que se movia de um lado para outro, a exemplo do cão pastor.

Era o proprietário do castelo, preocupado com os negócios. No enorme patrimônio que possuía não cabia toda a sua ambição e esta o forçava a querer cada vez mais. Tornava-se necessário manter guarda à sua porta, temendo, quem sabe, alguém que, na calada da noite, viesse reclamar e levar algo que não lhe pertencia. O remorso atormentava o homem no silêncio da noite, lembrando que aquela imensa fortuna custara à infelicidade de alguns.

Continuei caminhando, pensando, agora, nos dois, e perguntando a mim mesmo: será que a infelicidade está com o pobre velho, que, ao fim da vida, tinha o céu como teto e o chão como leito, mas dormia, profundamente, na mais absoluta paz de espírito, ao lado de seus humildes pertences, ou com o abastado que, numa alcova de luxo, idolatrado pela sociedade, não conseguia conciliar o sono no inútil travesseiro macio, revestido de veludo?

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